sexta-feira, 1 de novembro de 2013

ENTRE VIDA DE GARI E VEREADOR

Entre a vida de gari em Pedras de Fogo e de vereador em Itambé-PE
Gilmar Monteiro, o Índio do Manguzá, exerce a profissão de gari em Pedras de Fogo e também é vereador pelo PCdoB em Itambé
O gari Gilmar Monteiro da Silva (PCdoB), 37 anos, acorda quando o céu ainda está escuro, toma um copo de água, come um pedaço de cuscuz e veste um uniforme amarelo e azul para a labuta. Às 5h30, com os raios de sol ainda tímidos, ele já está em Pedras de Fogo, município do interior da Paraíba, pronto para limpar a sujeira nas ruas deixada por outros. Porém, uma vez por semana, nas quartas-feiras à noite, o guarda-roupa de Gilmar muda radicalmente. Por volta das 18h30, ele veste um paletó preto que comprou no início deste ano e vai à sessão da Câmara Municipal de Itambé, na Mata Norte de Pernambuco, onde exerce o mandato de vereador pela primeira vez. Conhecido como Índio do Manguzá, Gilmar tem duas vidas entre as cidades irmãs de Pernambuco e Paraíba. E em ambas, ele quebra rótulos e preconceitos. Num país de tantos funcionários fantasmas, ele se divide em dois para trabalhar e defende mudanças para a política de Itambé na mesma velocidade que tenta varrer as ruas de Pedras de Fogo.
Essa não é uma história comum de ascensão social. É a de um homem que é gari, apesar de ser vereador, e conseguiu ser exceção à tese de invisibilidade pública apresentada pelo psicólogo social Fernando Braga, em 2008, na Universidade de São Paulo. Se a tese apontava a facilidade das pessoas que não têm qualificação técnica ou acadêmica de ficarem invisíveis, Índio do Manguzá, como gosta de ser chamado, não faz parte dela. Está fora dos padrões.
O vereador-gari nunca teve uma vida fácil. Até os 17 anos, morava em Pedra de Fogo e trabalhava com o pai, José Monteiro da Silva, falecido no ano passado. Foi agricultor, pintor, cortador de cana e tantas coisas mais que perde as contas. Fazia qualquer biscate que pudesse trazer comida para casa e ajudar a alimentar os irmãos, nove ao todo. Chegava a passar de 15 a 20 dias com o pai, seu maior exemplo de vida, nas plantações da mata de Salamago e do Rio.
O trabalho árduo, contudo, nem sempre foi suficiente. Para sobreviver, como tantos Silvas nesse Brasil, sentiu-se muitas vezes excluído e humilhado por dormir em cama de vara e passar fome. Índio perdeu quase todos os dentes comendo farinha com mel, mas conseguiu um corpo robusto, pronto para a dureza da vida. Esse alimento básico, recebido na escola, principalmente, o ajudou a concluir o ensino fundamental.
Inspirado nos conselhos do pai, a vida melhorou quando Índio começou a dar um sentido a sua dor, a dividir o pouco que tinha cada vez mais. Em 2004, com apoio de amigos em Itambé, iniciou um trabalho social, distribuindo munguzá aos sábados na comunidade do Maracujá, onde mora até hoje. Ganhou, a partir de então, o apelido pelo qual se tornou conhecido. Um nome que simboliza sua luta nas matas do interior pernambucano pela sobrevivência e sua solidariedade para os ajudar os que têm tão pouco, como ele.
Dois anos depois, Índio passou num concurso público de gari, em Pedra de Fogo, com uma nota de 7,5, e começou a ganhar cerca de R$ 1 mil. O dinheiro não se multiplicou porque ele sempre procurou ajudar os vizinhos. Mas os amigos sim, estes cresceram.
“Minha situação foi diferente daquele (psicólogo) que disse que o gari era invisível. O gari ou qualquer outra pessoa, só é invisível quando é egoísta. Só é invisível quando olha para si próprio. O fator diferencial da minha história é o seguinte: ‘se eu tiver um pacote de fubá, eu vou dividir com aquele que está passando necessidade’”, afirmou, com os olhos marejados.
A preocupação com o outro levou o gari a tentar um mandato político em 2012. O estopim teria sido quando ele estava numa das comunidades de Itambé, viu crianças comendo barro e, pouco depois, encontrou uma família que não se alimentava desde o início da manhã. “A comunidade que eu ajudava dizia: ‘Índio, sai candidato. Você sem ter nada faz, imagine se for vereador’”, lembrou, reproduzindo as palavras de uma conhecida. Tais palavras foram sendo trabalhadas com um conselho aqui, outro acolá e resultaram numa vitória nas urnas de Itambé com 789 votos. Ele foi o sexto mais votado do município e tem muitas histórias para contar.
A família e as doações
Índio Manguzá não se rendeu ao jeito de sobreviver tão criticado pela escritora Lya Luf. Aquele que evita comer o lixo concreto, mas engole o lixo moral, fingindo que está tudo bem. Casado há 15 anos com a mesma mulher, Fernanda Maria da Conceição, 36, o gari que é vereador nunca se acomodou com o lixo moral. Ainda tem vergonha da pobreza que vive com a esposa e quatro filhos, mas tem juntado o salário de vereador, cerca de R$ 3 mil, com o de gari, aproximadamente R$ 1 mil, para ajudar à comunidade e, vez ou outra, comprar um móvel para a casa, um lugar muito humilde.
Os adversários e aliados dizem que ele está mergulhado em dívidas, porque comprou um carro, um Strada cinza, ano 2010, e tem feito muitas festas para a comunidade, o que não seria papel do vereador. No Dia das Mães, por exemplo, Índio encomendou um bolo de 30 quilos e deu vários tipos de presentes às mulheres do bairro do Maracujá. Antes, já tinha doado 52 kits escolares e comprado 600 ovos de páscoa para as crianças, além de levar e trazer moradores de Itambé para hospitais do Recife ou de João Pessoa.
Apesar dos gastos vistos como excêntricos, a vida social de Índio ainda contrasta com a vida pessoal. A residência dele tem dois quartos sem portas, paredes verde e rosa gastas, móveis esmaecidos. Os quartos mal iluminados são isolados de uma pequena cozinha por lençóis coloridos e o guarda-roupa onde pendura o paletó está com a porta quebrada. Na sala, os dois filhos menores dormem num beliche, separados do sofá com uma cortina vermelha. “Eu nunca vi um vereador fazer o que ele fez”, conta a mãe, Maria Ivete Marcolino, 66 anos. “Reclamam tanto que ele comprou esse carro, mas ele vive levando as pessoas para o hospital”, protesta.
Para contestar as queixas de assistencialismo, Índio diz que também fiscaliza o poder público, sua verdadeira função. Conta que reclama quando não vê as obras prontas e já vem recebendo crítica dos aliados por tantas cobranças. “Eu também sou fiscal e tenho projetos aprovados. Não ajudo as pessoas de agora. Isso ninguém pode falar de mim”, arrematou, com a voz embargada.
A câmara e as ruas
Orgulho e preconceito
É visível o preconceito que Índio do Manguzá ainda sofre entre os colegas de Câmara, 11 ao todo, contando com ele. Especialmente pelo fato de ele ainda trabalhar como gari em Pedras de Fogo. “Ele só vai ter esse mandato, porque ninguém aguenta ficar nessa rotina”, disse um vereador, pedindo reserva no nome. Já o presidente da Câmara, Edvaldo do Caricé (PSB), procurou amenizar. “Ele tem vontade de acertar, mas, muitas vezes, é precipitado. Muitas vezes quer dar um passo maior que as pernas. Muitas vezes, ele chega aqui brabo, querendo resolver as coisas, mas não é assim”, acrescentou, sem querer contar que passo tão grande era esse pretendido por Índio. “O que posso dizer é que ele tem o mesmo direito de todos e merece crescer na vida”.
Entre os garis, contudo, a presença de Índio do Manguzá serve como uma inspiração. Segundo Elço Pereira, 35 anos, chefe de divisão de limpeza urbana de Pedra de Fogo, ele continua fazendo o mesmo trabalho de antes, mesmo depois de se eleger. “É muito bom que ele tenha se elegido porque ainda existe muito preconceito em relação aos garis, mas isso está mudando. É uma vitória”, afirmou. “Ele realmente é uma pessoa do bem”, acrescentou o gari José Flávio, 24 anos, companheiro de Índio nas faxinas matinais.
Para Índio, que enche os olhos de lágrimas ao contar sua trajetória, é mais fácil limpar as ruas do que mudar a política. “Mesmo assim, eu vou fazer a minha parte. Eu vou entrar para a história política desse país como varredor de rua, como primário… Eu me orgulho porque respeito o ser humano. Isso não tem preço. Com ou sem paletó, a roupa não importa ”, prometeu.
Fonte: Aline Moura - Diario de Pernambuco

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