No Dia do Gari, Slum apresenta especial com histórias de vida
A vida também é feita de descartes. A todo o momento jogamos algo fora. Uma lembrança, uma promessa, as sobras do amor, um pedaço da história, os restos da reforma, o lixo nosso de cada dia. Em todos os casos, ele está lá, pronto para acabar com a sujeira que teimamos repetir e com a qual não aprendemos a lidar: o gari.
O profissional de limpeza, que ganhou o dia 16 de maio para celebrar sua profissão – tão nobre e digna como qualquer outra, saliente-se –, começa a conquistar o respeito que merece e a mostrar que há um ser humano com anseios e aspirações de viver bem dentro da farda laranja que, paradoxalmente, parece torná-lo invisível aos olhos da sociedade.
No ofício, seja como coletor ou agente de limpeza, sempre há trabalho – e muito – pela frente, dia após dia. Afinal, falamos de uma Maceió com um milhão de habitantes que produzem e descartam diariamente resíduos de toda ordem, muitas vezes de modo inadequado.
Mas nem ouse dizer a um agente de limpeza o pensamento rasteiro: “O lixo que eu produzo garante o seu emprego”. Você corre o risco de ouvir: “Morrer ninguém quer para dar trabalho a coveiro”, como apontou a gari Verônica Santos, 47, uma das personagens que ilustram o presente texto. Junto com Augusto Neiva, 47, e Antônio Silva, 26, ela é um dos exemplos que reafirmam o valor da profissão e de como o dia-a-dia de um gari não se resume a limpar o seu trabalho sujo. A Superintendência de Limpeza Urbana de Maceió tem a honra de relatar os seus exemplos e histórias de vida a seguir. Confira.
Do mercado para a universidade
No final do ano passado, alguns comerciantes do Mercado da Produção foram surpreendidos com a atitude de dois garis que atuam na limpeza da área do antigo Ceasa. Eles inverteram a lógica e, ao invés de pedir um “agrado de fim de ano”, os agentes de limpeza distribuíram caixas de chocolates com os comerciantes que contribuíram com o seu trabalho ao longo do ano. “As pessoas estão acostumadas que o gari peça uma ajuda, mas eles nos ajudaram na limpeza, nada mais justo do que nós agradecermos a eles. Foi uma forma de conscientizá-los”, explicou o gari José Augusto da Luz Neiva.
No exato dia da entrevista, Augusto completava 12 anos como agente de limpeza. Aprovado em concurso público, ele trabalha na área do Mercado da Produção há três anos. Antes, chegou a atuar nas ruas dos bairros do Vergel do Lago e do Prado.
A mudança de “escritório” ocorreu após passar no vestibular para o curso de Tecnologia em Laticínios, no Instituto Federal de Alagoas (IFAL). O estímulo veio da família. Esposa, filho e um irmão, já falecido, insistiram. “As pessoas dizem que um agente de limpeza não tem como mudar de função. Mas a família falava que com estudo eu conseguiria crescer na vida. Voltei a estudar, fiz Enem e passei”, relata Augusto.
Depois de 26 anos sem encarar a sala de aula, o gari venceu preconceitos, como o da profissão e o da idade, e abriu um novo horizonte em sua vida.
O curso foi escolhido a partir de uma empatia de criança com produtos derivados do leite. “Sempre achei interessante a coisa queijo e do leite. Um dia, vi uma reportagem sobre o curso e resolvi arriscar”, explica.
Hoje, a rotina diária de Augusto Neiva é dividida com as manhãs na sala de aula e o turno de seis horas como gari, na parte da tarde. Com o diploma, além de um aumento no salário na atual profissão, ele pode futuramente atuar como consultor de alimentos, no gerenciamento de processos ou até criando produtos em laticínios. Porém, o seu objetivo é continuar na universidade, como professor. “Pretendo fazer um mestrado em Nutrição para ensinar”, confessa.
Por fim, Augusto revela que a volta aos estudos o fez valorizar ainda mais o ofício da limpeza. “O próprio gari precisa perder o preconceito que ele tem consigo mesmo”, ensina Neiva, que passa o recado para a população. “As pessoas precisam ter consciência que o lixo que elas descartam de modo irregular hoje vai prejudicá-las amanhã. Conscientizar é a palavra-chave. Conscientize o ser humano que ele muda”.
Lutar para viver melhor
Câmeras nas ruas para fiscalizar e multa e trabalho para quem descarta o lixo inadequadamente na cidade. Eis as ideias da gari Maria Verônica Santos da Silva para combater a sujeira provocada diariamente pela população. “Eu acho que deveria ter multa e também que as pessoas pagassem com um trabalho de limpeza. Elas deveriam atuar na limpeza urbana durante um tempo para aprender”, aponta a gari. “Na Praça Padre Cícero, no Vergel, é uma vergonha. Quase todos os dias, uma caçamba da Slum vai lá, recolhe o lixo e no outro dia está a mesma sujeira. Deveria haver câmeras nas praças para flagrar quem joga o lixo. Tenho certeza que é mais barato instalar uma câmera do que enviar um caminhão para recolher lixo todos os dias”, completa.
Verônica não é boa só de cabeça – tronco e membros também começaram a entrar em forma mesmo aos 47 anos de idade. Não bastasse a batalha diária de tentar deixar as ruas do Vergel do Lago limpas e higienizadas, ela encontra forças para praticar boxe e muay thai, duas horas por dia, de segunda a sexta.
A motivação foi o excesso de peso, 15 quilos acima do recomendado. O filho, fã de artes marciais, contribuiu com um estímulo extra. Após a chegada à Academia Gladiador, no Núcleo de Cultura do Vergel, a evolução foi rápida, garante o professor Flávio Melo. “Com um mês de academia, parecia que ela já vinha treinando há três meses ou mais. Ela bate forte, tem uma desenvoltura e uma condição motora boa”, avalia o mestre.
Corpo e mente agradeceram e logo Verônica passou a sentir os benefícios da prática esportiva: “Eu vivia com dores pelo corpo e me sentindo muito pesada, indisposta, tinha até insônia. No primeiro dia de pratica, eu já senti a diferença no meu organismo, no meu metabolismo”, garante ela, que já pensa em participar de um torneio programado para o mês de setembro.
Mas o dia não acaba aí para ela. A noite, ainda tem o curso de Processos Gerenciais em Alimentos, na Univesidade Estadual das Ciências da Saúde de Alagoas (Uncisal). “Foi o meu trabalho de gari que me permitiu ter tempo para voltar a estudar. Quando passei no concurso, eu nem tinha o segundo grau. Agora, já penso em fazer pós-graduação em Gestão Ambiental”, diz.
Concursada pela Prefeitura de Maceió e há 13 anos na labuta da limpeza pública, Verônica diz ter orgulho da profissão. Chegou até a rejeitar os convites de transferências para outras secretarias. “Eu estou na limpeza por que optei. Eu acho um trabalho ótimo. É gratificante, eu gosto do que eu faço. Eu acho lindo quando vejo uma rua que estava suja e foi limpa graças ao meu trabalho”, assegura. Mas não deixa de puxar a orelha dos sujões. “A gente tenta manter a cidade limpa, mas a população não colabora”, cutuca, antes de relatar um fato inusitado. “Eu larguei do trabalho e fui andado pra casa, pelo Dique Estrada. Vinha um carro grande, um carro bom, e jogou uma sacola de lixo que estourou no meio da pista. Depois ele jogou outra. Quando ele diminuiu a velocidade e passou por mim, eu disse: ‘Coisa bonita!’. A reação dele foi mandar uma banana para mim. Quer dizer, que consciência essa pessoa tem? E ao longo do Dique Estrada há vários containeres”.
Por fim, Verônica lembra que, apesar de já ter se sentido mais marginalizada, a valorização de sua profissão vem aumentando. “As pessoas estão começando a respeitar o nosso trabalho. Mas ainda há quem falem assim: ‘Eu queria arrumar um emprego nem que fosse de gari’, como se essa fosse a pior profissão do mundo. E não é. É um trabalho digno e muito importante para a sociedade. Quem sabe daqui a um tempo essa mentalidade muda”, conclui.
Tony Silva, o Maluquinho do Forró
“Achei um corpo no Riacho do Salgadinho”. José Antônio da Silva descreve sumariamente o momento mais curioso que viveu durante os 18 meses de atuação na limpeza urbana. A cena mórbida contrasta com o jeito espirituoso do jovem de 26 anos, também conhecido pelo nome artístico de Tony Silva, o Maluquinho do Forró.
Boa praça e de sorriso fácil, o carismático Maluquinho sonha desde criança em viver pelos palcos. Natural de Pão de Açúcar, mas criado e crescido em Maceió, o gari despertou para a música quando viu um show de forró, na cidade de Viçosa. Curiosamente, anos depois, a estreia como forrozeiro aconteceu durante uma vaquejada na mesma cidade.
Perseverante, ele fez a carreira começar a engrenar. Chã Preta, Viçosa, Maceió, Porto Calvo, Barra de Santo Antônio, em Alagoas, e até cidades pernambucanas como Correntes, Garanhuns e Canhotinho, já assistiram as apresentações de Tony Silva. “Eu faço festa de aniversário nas cidades, os prefeitos me chamam, já toquei até aqui numa festa da empresa”, diz ele, que é funcionário da Viva Ambiental, uma das companhias terceirizadas que realizam a limpeza urbana na cidade sob gerenciamento da Slum.
No palco, são seis componentes e uma música que ele classifica como “uma mistura de vanerão e pisadinha”, vertentes derivadas do forró eletrônico. A discografia acumula três lançamentos em CD e até um DVD, tudo produzido artesanalmente, e com repertório que mistura sucessos do momento com composições autorais. “Gosto de mexer com os dois públicos. O meu show é diferente, eu canto, agito e brinco com o pessoal”, garante.
O dinheiro dos cachês ajuda a complementar a renda, mas Maluquinho diz que canta mesmo é por amor. “O meu sonho é musica. Eu gosto de cantar, posso até nem ganhar um real, mas quando mais show eu fizer melhor. Se alguém disser: ‘Eu pago 10 centavos’. Eu vou. Basta pagar os músicos”, revela. Os calotes são raros, mas acontecem. “Como não tenho empresário, levo uma trombazinha de vez em quando e tenho que pagar os músicos com dinheiro do meu bolso”, conta.
De volta ao trabalho, ele diz fazer a coleta “com alegria”. “É um dos melhores empregos que eu já tive. Aqui, foi onde eu mais melhorei a minha vida. Agora, estou com projetos para investir na banda. Peraí, que vou botar a música nova que eu fiz”. E o ritmo frenético de “Chelê-lê-lê” começa a ecoar pelas caixas de som…